A natureza tem direito à existência e ao desenvolvimento. Na lei orgânica de Florianópolis, é assim desde 2019. O tema foi incorporado por uma emenda, após muita discussão e dois anos de tramitação. O instrumento está sendo usado como argumento em uma ação civil pública reivindicando providências em relação ao vazamento de esgoto na Lagoa da Conceição, em 25 de janeiro de 2021. Naquela ocasião, chuvas fortes atingiram a cidade e provocaram o deslizamento da contenção de uma lagoa artificial que recebe efluente tratado do sistema de esgotamento sanitário. “A emenda deu voz à Lagoa”, diz o vereador Marcos José de Abreu (PSOL), Marquito. “Uma das argumentações jurídicas é que o município já reconhece o direito da Natureza, e a Lagoa deve ter seu direito de ser e permanecer saudável reconhecido”. A ação foi organizada por grupo de juristas ligados à Universidade Federal de Santa Catarina e às comunidades do entorno da Lagoa. Para fazer jus a esse direito, estão sendo reivindicadas medidas compensatórias e que se estabeleça um modelo de governança e de processos de atuação em defesa da Lagoa da Conceição.
“O direito da Natureza traz a ideia da Terra como organismo vivo. Essa concepção vem dos povos tradicionais da América Latina, que não dissociam a natureza e o sujeito. A montanha como um ser, o rio como um ente, um avô, um padrinho. Isso supera a visão de sustentabilidade como exploração da natureza como recurso”, diz Marquito.
“É um olhar não mercadológico ou monetizado. E o direito da Natureza não está isolado. Ele tem a ver com a agroecologia, o cuidado com o solo, a diversidade alimentar. Florianópolis livre de agrotóxicos, lei da compostagem e lei das abelhas nativas têm a mesma concepção da natureza como ser vivo”, afirma.
A experiência de Florianópolis será tema da participação do vereador num painel da Assembleia Geral da ONU em Nova York, em comemoração ao Dia Internacional da Mãe Terra, nesta sexta, 22 de abril. O encontro vai debater a proteção da diversidade biológica e avaliar a evolução da incorporação dos Direitos da Natureza em iniciativas locais, regionais e nacionais: “Harmonia com a Natureza e a Biodiversidade: Contribuições da Economia Ecológica e a lei centrada na Terra“.
De acordo com a ONU, 37 nações incorporaram o tema de alguma forma em nível oficial e institucional. Na América Latina, vários países colocaram esses direitos em constituições nacionais, como Equador (desde 2008) e Bolívia (2010) — o Chile está debatendo o assunto em sua constituinte, no governo de Gabriel Boric. No mundo todo está crescendo o número de cidades que fazem o mesmo.
No Brasil, os primeiros municípios a instituir o tema na lei municipal foram Bonito (PE) e Pau-d’alho (PE), em 2018, seguidos de Florianópolis (2019). A cidade de São Paulo já aprovou em todas as comissões da Câmara dos Vereadores, e a emenda aguarda votação. Fortaleza (CE), Salvador (BA), Caitité (BA), Palmas (TO), e Anchieta (SC) também já têm propostas municipais.
“Além de municípios, conseguimos formular propostas já protocoladas nas Assembleias Legislativas do Pará e de Minas Gerais e, nessa semana, estamos articulando uma para Santa Catarina”, diz a advogada e ativista Vanessa Hasson. Fundadora da ONG Mapas, em 2004, e integrante do programa Harmonia da Natureza da ONU, Vanessa também participa do painel do dia 22.
“Vou falar da situação do Brasil, do rompimento de políticas de proteção à natureza desde que o atual governo tomou posse e da importância do reconhecimento dos direitos da natureza em lei para que os programas e projetos de proteção possam ser implementados”, diz ela.
“Montanhas e rios também vêm tendo seus direitos reconhecidos, como o rio São Bartolomeu, em Alto Paraíso”, afirma Vanessa. Em 2016, a Colômbia reconheceu os direitos do rio Atrato e, em 2018, fez o mesmo com a Amazônia colombiana. O rio Whanganui, na Nova Zelândia, e o Ganges, da Índia, são entidades jurídicas. Geleiras, cachoeiras e ar do Himalaia também têm seus direitos assegurados formalmente.
A Mapas promove a inclusão dos direitos da natureza em lei em vários níveis e atua em educação ecológica. Acaba de inaugurar a Escola do Bem Viver, projeto itinerante e replicável que já foi desenvolvido em área de preservação permanente na Mata Atlântica do litoral de São Paulo, e que também será apresentada no painel na ONU.
A mobilização em torno dos direitos da Terra é irreversível, considera Marquito. “A saída para essa crise profunda que estamos vivendo é deixar de ver a natureza como instrumento a ser explorado e retomar a ideia da natureza como sujeito, como ensinam os povos originários”.
Em artigo recente, o economista equatoriano e ex-presidente da Assembleia Constituinte do Equador, Alberto Acosta, diz que o exemplo chileno mostra que o mundo está avançando na discussão sobre os Direitos da Natureza. “A razão é simples: a realidade não pode mais ser encoberta. O colapso ecológico é inegável. Nenhuma região, população ou mar está mais a salvo dos danos causados atualmente por este colapso”.
“A humanidade é brutalmente e globalmente confrontada com a possibilidade certa do fim de sua existência. Devemos agir”, escreve.