Os Direitos da Natureza

Somos seres habitantes de uma mesma casa, o planeta Terra; fazemos parte de uma mesma comunidade que compreende além dos seres humanos, todos os demais seres animados e mesmo as coisas aparentemente sem vida, como a própria Terra e a terra, aquela constituída de alto percentual de microrganismos vivos, reconhecidamente dotados de vida (e até como parte da própria vida humana, presentes que estão em similar proporção no corpo humano). A vida humana é interdependente da vida e da existência dos demais seres acolhidos por essa que é a Mãe nas cosmovisões das comunidades ancestrais originárias, a Madre Tierra, a Pachamama.

Os Direitos da Natureza correspondem a um novo paradigma ético-jurídico baseado na cosmovisão ancestral indígena que reconhece tal interdependência entre todos os elementos naturais – sejam os animais, vegetais, minerais  ou humanos. Eles partem do reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos, e não como objeto de direitos dos seres humanos, passível de sua apropriação e exploração.

Os Direitos da Natureza nasceram de um movimento global recente iniciado com a promulgação da Constituição Federal do Equador de 2008, e propõem uma mudança paradigmática das ciências jurídicas. Enquanto o direito ambiental preconiza respostas antropocêntricas à destruição do meio ambiente, onde o ser humano está no centro das preocupações e a Natureza é considerada um mero recurso apropriável a ser explorado; os Direitos da Natureza, também chamados de direitos da Mãe Terra, ou da Pachamama em quechua, defendem as visões biocêntrica ou ecocêntrica.

A Natureza passa, assim, a ter valor intrínseco, ou seja, valor por si mesma, ao invés de ser valorizada tão somente por ser útil à humanidade (valor instrumental). O antropocentrismo, que coloca os seres humanos como centro do universo, e como os únicos capazes de atribuir valor a outros seres, é substituído por outros modelos éticos jurídicos, como o já mencionado biocentrismo – que reconhece valor intrínseco à vida em si – e o ecocentrismo – que reconhece valor intrínseco aos ecossistemas como um todo.

Viver em plenitude é a resposta que o direito tem adotado desde as constituições promulgadas sob a perspectiva do novo constitucionalismo democrático latino-americano. As novas legislações do Sul, especialmente a Constituição Federal do Equador (2008) e a Lei Federal da Bolívia (2010), pautaram a vida da sociedade sob uma perspectiva ecocêntrica e do ‘paradigma ancestral comunitário’, baseado na ‘cultura da vida’ que ensina a viver em harmonia e equilíbrio com o entorno, por eles denominada como o vivir bien ou buen vivir, traduzido na língua originária da Nação Quechua como ‘sumak kawsay’ ou ‘teko porã’ para a Nação Guarani.

Os povos andinos ressaltam que a identidade de um povo está, sobretudo, no relacionamento identificado com seu território e a harmonia com a Terra. Não é à toa que as atividades de colonização incluíam a expropriação das terras dos povos originários. É no resgate da identidade que a vida em plenitude do indivíduo se inicia e, assim, a identificação com o território passa a ter fundamental importância.

Por constituir-se dessa identidade a partir da Terra e do território, mesmo ao ser humano já totalmente desconectado de suas origens, a proximidade com a terra em seu sentido material e por desdobramento, ao sentido telúrico, é um caminho, a partir de um olhar multidimensional, holístico, para o (re)estabelecimento da vida em plenitude. De uma parte, o ser humano (re)estabelece o relacionar-se consigo mesmo ao readquirir consciência de si e de sua real natureza e, de outra parte, pela proximidade, (re)inaugura o relacionar-se com o todo, com a Terra – a mãe e a casa comum da com(um)nidade planetária.

Sob essa perspectiva teórica, temos trabalhado com o movimento pelo reconhecimento dos Direitos da Natureza em estreita colaboração com o Programa Harmony with Nature da Organização das Nações Unidas, onde já está publicada a Carta da Natureza, promovida por nós e assinada por várias autoridades no Brasil (ONU, 2017)

O Harmony with Nature é uma iniciativa da ONU diretamente vinculada à Assembleia Geral, que visa a aprovação de uma Declaração Universal dos Direitos da Natureza e consolida todas as iniciativas políticas no âmbito das cidades, estados e países do mundo, que visem o reconhecimento de tais direitos.

Equador, Bolívia, Argentina, Nova Zelândia, Indonésia, Índia, Colômbia e as Cidades de Santa Mônica e Pittsburgh nos EUA, dentre várias outras localidades no mundo já internalizaram a iniciativa.

Os Rios merecem destaque nesse movimento, tendo sido os primeiros entes da Natureza a terem seus direitos reconhecidos.

Os Municípios de Bonito (em 2017) e Paudalho (2018), no Estado de Pernambuco, Florianópolis (2019), em Santa Catarina, Serro (2022), em Minas Gerais, e Guajará Mirim (2023), em Rondônia, sob nossa consultoria, aprovaram emendas às suas Leis Orgânicas Municipais para reconhecer Direitos à Natureza. Em todos os municípios, atendemos às reivindicações de movimentos locais. Ainda em 2023, Alagoa Nova, na Paraíba, alterou sua Lei Orgânica para reconhecer os Direitos da Natureza. 

Destacamos que, em Guajará Mirim, a reivindicação veio de comunidades indígenas e foi institucionalizada por um vereador indígena. Logo após a aprovação da Emenda à Lei Orgânica, foi aprovada uma lei ordinária específica, também elaborada sob nossa consultoria, para atribuir direitos ao Rio Laje – ou Komi Memen, na língua indígena Wari. O Rio Komi eMemen tornou-se, assim, o primeiro rio brasileiro sujeito de direitos!

O município de São Paulo já conta com a propositura de dois projetos de lei no mesmo sentido e estamos, igualmente, impulsionando o movimento nos Estados do Pará, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraíba e Bahia, abrangendo quase todas as regiões do país.

A partir do reconhecimento dos Direitos da Natureza em Lei, abre-se caminho para a institucionalização da política comunitária, com resgate e valorização de suas relações interculturais e de seus saberes ancestrais, proporcionando a introdução de políticas públicas correlatas capazes de fundamentar, fomentar e incentivar programas e projetos para o Bem Viver.

Gostaria de saber mais sobre a atuação da mapas no Brasil para o reconhecimento dos Direitos da Natureza? Venha conhecer nossos projetos de advocacy!

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