Neste ano, a cidade de Linhares, no Espírito Santo, se tornou pioneira ao reconhecer suas ondas como seres vivos. Para a advogada ambiental Vanessa Hasson e o professor Alexander Turra, reconhecimento jurídico marca um avanço na conservação costeira
Texto: Denis Pacheco
Arte: Olívia Rueda*
Em julho deste ano, a cidade de Linhares, no Espírito Santo, tornou-se uma das primeiras no mundo a reconhecer suas ondas como seres vivos, dando a elas personalidade jurídica. A medida inovadora foi aprovada pela Câmara Municipal, surgindo para preservar as ondas da foz do Rio Doce, protegendo sua forma física, ciclos ecológicos e composição química. A legislação também nomeou guardiões para representar essas ondas em decisões públicas, garantindo a integridade de um dos maiores patrimônios ambientais da região.
A advogada ambiental Vanessa Hasson, diretora executiva da ONG Mapas, especializada pela Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, foi uma das articuladoras da conquista. Seu trabalho, em colaboração com surfistas ativistas e moradores locais, foi essencial para a construção dessa nova narrativa jurídica. “Desde 2015, [a população] está nessa luta, e eu me conectei com eles um pouco depois, em 2017”, lembra ela.
O projeto de lei se inspira em iniciativas internacionais que já reconhecem elementos naturais como sujeitos de direito. “[A legislação] é pioneira, de maneira geral, em relação ao mar. Existe uma bem emblemática, que foi o reconhecimento do Mar Menor, na região da Espanha. Ele foi o pioneiro [a ter direitos próprios]. Mas uma onda não tem. Uma onda emblemática que fica na foz de um rio emblemático por tudo que representa nessa atividade que explora a terra”, afirma ela. O reconhecimento das ondas tem como um de seus principais objetivos proteger o ecossistema, que ainda sofre os efeitos da lama tóxica despejada no rio após o rompimento da barragem de Mariana.
A tragédia de Mariana ocorreu em 2015, quando o rompimento da barragem de Fundão, em Minas Gerais, despejou milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério no rio Doce. O desastre ambiental afetou diversas cidades ao longo do rio e chegou à foz, em Linhares, no Espírito Santo. Além das vidas humanas perdidas, o rompimento contaminou gravemente o ecossistema da região, com metais pesados impactando a fauna, flora e as ondas da praia de Regência, conhecidas mundialmente pela prática de surf.
Para a advogada, o reconhecimento da lei também pode servir como uma ferramenta pedagógica: “Quando você se depara com uma lei que reconhece uma onda como ser vivo, isso pode despertar um novo entendimento sobre nossa interdependência com a natureza. É uma lei que faz você pensar e agir de forma mais consciente e ecológica”.
“O oceano é um só”
O professor Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, especialista em ecossistemas marinhos, vê a lei como um importante passo para a conservação costeira: “O reconhecimento da qualidade da onda e das reservas de surf, que acabam sendo outra estratégia de conservação, remetem para a gente diferentes significados do ambiente marinho. Esses ambientes têm que ser protegidos por diversos motivos”, explica ele ao esclarecer que, no caso do Espírito Santo, precisamos “entender como essas ondas são formadas e especialmente proteger essa condição. Elas podem ser afetadas por entrada de sedimento em demasia ou falta de sedimento”.
O especialista também reforça a importância de entendermos o oceano como um sistema interconectado, fato que notamos, particularmente, diante de tragédias. “Quando a gente tem uma tragédia como tivemos em Mariana, a quantidade de lama que chega na foz do rio Doce acaba modificando essa morfologia da costa e, especialmente, a forma como a onda interage com ela. Ou seja, a onda que quebra para o surf é resultado de como a onda formada no meio do oceano interage com a morfologia da costa”, esclarece o especialista.
Para o docente, o reconhecimento jurídico conquistado pelas ondas da foz do rio Doce pode transformar nossa relação com os processos naturais: “Quando a gente destaca isso, sinaliza que o oceano é importante para diferentes tipos de finalidades e públicos. A ideia é que a gente tenha um oceano único, interligado, global, o que nos faz entender que esses fenômenos afetam o conjunto todo, mesmo que não sejam gerados em uma só localidade. Por outro lado, a gente tem também diferenças gritantes entre as bacias oceânicas, aqui no Brasil inclusive, de como a gente se relaciona com o oceano, e isso traz para a gente elementos concretos. Um oceano que se desdobra em muitos oceanos”, finaliza.
Aúdio: Rádio USP